Sunday, December 03, 2006

SOBRE OS AMORES CASTOS

Um dia eu conheci um menino. Um dia há muito, muito tempo. E eu conversei com ele como tinha esquecido que se podia conversar com alguém. E lá dentro as coisas já foram se remexendo daquele jeito que eu chamo de iminência de algo grande. Só fui sentir de novo essa iminência esses dias, há pouco tempo, e olha só no que foi dar. Mas enfim. E quando, depois de conversar a noite inteira, nós saímos na luz da manhã e o sol bateu nos olhos azuis dele eu pensei: fodeu, estou apaixonada. Eu sei que vou lembrar desse momento até não ter mais memória, porque foi uma coisa muito séria na minha vida.

Fodeu porque eu era casada. E tinha acabado de ter uma filha. Não sei se ele passou por isso também. Acho que sim. Não sei. Mas eu sou uma pessoa decente. Não muito decente, porque continuei falando com ele. A minha sorte, ou azar, é que ele não mora nesta metrópole. Naquela época eu não sabia que era bipolar. Nem fazia idéia. Gostaria de fazer, porque teria evitado diversos outros transtornos na minha vida, cicatrizes a menos, corações despedaçados a menos e nenhuma dor infligida a quem eu amava sem poder controlar o que fazia. Foi o começo do fim. Naquela noite tive a primeira briga feia com meu ex-namorado, marido, enfim, o homem que eu amava e que dividia a vida comigo e era pai da minha filha. Não sei se teve a ver com os olhos de safira daquele menino lindo. Talvez tenha sido apenas uma infeliz coincidência. Foi feio, foi dolorido e a partir dali as coisas foram ficando ruins. O que eu sei é que meu coração estava duplicado naquela época. Duplicado porque o que eu sentia por ele não interferia na minha vida com o meu homem. Eu não tinha planos de fugir com ele nem nada. Aquilo era um segredo meu, só meu, não "nosso", meu apenas. Eu não queria que a minha vida desmoronasse. Mas era um fato: eu estava apaixonada. Ninguém escolhe por quem ou quando vai se apaixonar. Simplesmente acontece e quando você vê não tem nenhuma defesa contra aquele sentimento muito bem alojado dentro de você. Mas, como já disse antes, eu sou uma pessoa decente. Eu não tive um caso, não chegou nem perto disso. Simplesmente guardei aquele sentimento e lidei com ele.

Até o dia que encontrei o menino dos olhos de safira de novo. Eu já sabia que ia encontrá-lo. Meu namorado, marido, aquele, estava junto. Ele e uns amigos. E eu tomei um fogo homérico e estraguei tudo. Ele diz que não. Ele, o olhos de safira. Mas eu sei que sim. Naquela época, antes dos remédios, quando eu bebia, ficava incontrolável. Briguei com meu namorado. Ele teve uma crise de narcolepsia voluntária e dormiu pra não ver nada daquilo. Eu simplesmente estava fora de mim em estupidez. Morro de vergonha só de lembrar as partes que eu lembro. O que eu não lembro então, não quero nem saber. E depois disso eu perdi o meu amigo. Porque ele não era um amante. Era um amor casto e secreto e um amigo muito querido. E ele nunca mais falou comigo direito. Um quilômetro de distância em qualquer conversa. Agora eu sei que foi porque ele achou que eu queria algo que ele não podia me dar. Eu não queria nada, apenas estava louca.

E ontem, depois de muito tempo, lá estava o menino e seus olhos de novo. E eu pensando, meu deus do céu, isso tudo ainda está aqui, mas aonde estava, dormindo? Amor casto. Descobri que isso não morre. De novo tem uma pessoa que eu amo na minha vida, mesmo que ele não esteja dividindo vida alguma comigo e haja um oceano entre nós. Não importa, eu o amo e tenho muita certeza disso e não me importo de esperar. De novo as vagas estão ocupadas. Acho que vai ser sempre assim. Não há nenhuma intenção real. É apenas um sentimento. E o menino dos olhos de safira não consegue me olhar nos olhos. Consegue só quando está lá em cima. A gente se entende de alguma forma. Mas quando eu vou tentar falar, ele foge. Olha para o outro lado. E eu me sinto lidando literalmente com um menino. Mas eu não agüentei. Eu preciso de conclusão e mesmo que eu tenha esquecido essa história toda por uns anos, ela ainda tava ali entalada e mal resolvida, e eu tenho pavor de coisas mal resolvidas. Aí eu puxei ele pelo braço delicadamente vem aqui e falei tudo. Falei assim, mais clara e cristalina impossível. Não sei se ele entendeu. Não sei se ele estava ouvindo. Mas eu falei. Acordei hoje com gosto de ressaca moral e de mojitos um pouco arrependida. Mas não. Você tem que fazer o que você tem que fazer, e eu tinha que fazer isso. Agora eu não sei. Não sei se ele vai falar comigo de novo. Não sei o que vai acontecer. Mas pelo menos agora tenho certeza que ele sabe. Se ele entendeu, eu posso ter o meu amigo de volta. Se ele não entendeu, bem, aí eu já não posso fazer mais nada além de botar o sentimento de volta no seu lugar na prateleira.


 
 

TUDO TINHA MUDADO. Menos o que ficou igual.

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senso*