DEBATENDO-SE
Era para ser sobre o feminino na literatura. Eu tinha muitas coisas para falar, eu e a Márcia. Vou citar um breve trecho do texto dela e do Mencken, que eu li no debate, para mostrar como poderia ter rendido em vez de ter EMBURACADO em assuntos que nada tinham a ver com a questão, me deixado nervosa, me feito perder a peça que eu queria ver e me ter feito levantar o tom de voz.
"Discurso Feminino na Literatura", da Márcia Denser:
"A escritora transgride a separação tácita existente entre esfera pública e privada, transformando-se ela própria, a mulher que publica, em “mulher pública”, quer dizer, a prostituta, que é a mulher pública por excelência; historicamente qualquer mulher que ousasse agir em público, arriscava-se a ser identificada como tal.
Criticamente, havia um acordo tácito de que certas palavras, certos temas estariam interditos às mulheres, devendo as questões do corpo e da sexualidade ser tratadas de uma forma elegante, esfriada ou cerebral, independente da qualidade do trabalho. Ou seja, está tudo bem, contanto que você escreva “de fora”, como homem. Ficcionistas e poetas que rompessem este acordo tácito, colocavam-se como transgressoras, apropriando-se de um discurso visto como prerrogativa masculina.
Quanto a mim, meu “fazer literário” é algo construído no cotidiano, constituindo-se o viver e o escrever uma só e a mesma coisa, não mais a vivência metafísica consumada apenas no plano subjetivo clariceano, e muito além duma subliteratura carraro/Cassandra.
Minha personagem toma a iniciativa no jogo de sedução e sexo, está interessada no seu próprio prazer, ela usa, não é usada pelo outro, desse modo opera a subversão do sistema de gêneros dominante e assim coloca a mulher como sujeito da ação, e não como objeto do outro, cancelando o papel de mulher–objeto. "
(Ela é foda, ela é incrível, eu sei.)
"A Mente Feminina" do H.L. Mencken, tirado do "Livro dos Insultos". Friso que foi escrito por um HOMEM em 1918. Li um breve trecho lá.
"(...) Esta cortante percepção da fanfarronice e do faz-de-conta masculino, esta aguda compreensão do homem como o eterno tragicômico, estão na base daquela piedosa ironia que responde pelo nome de instinto maternal. As mulheres adoram tratar um homem como um filho porque conseguem enxergar sua incapacidade de defesa, sua necessidade de um ambiente acolhedor e sua tocante tendência a se iludir. Este traço irônico não é apenas claro como água na vida real, diariamente; é também o que dá o tom da literatura feminina. Uma romancista, se for competente o bastante para ser levada a sério, nunca trata os homens como heróis. Ela sempre injeta em seu próprio personagem um toque de superioridade ou derrisão mal camufladas. Não consigo me lembrar de nenhum personagem masculino criado por uma mulher que não seja, no fundo, um palerma.
(...)
Os homens são fortes. São bravos em combate físico. Os homens são românticos e amam aquilo que concebem como sendo a beleza e a virtude. Os homens tendem à fé, à caridade e à esperança. Os homens sabem suar e carregar seus fardos. Os homens são ternos e cordiais. Mas, assim que demonstram possuir os verdadeiros fundamentos da inteligência - ou revelam capacidade para descobrir o cerne da verdade eterna no lusco-fusco da ilusão e da alucinação e tentam trazê-la à luz -, neste ponto estarão sendo femininos, e ainda nutridos pelo leite de suas mães. Os traços e qualidades essenciais do homem, suas características ainda não poluídas, são as mesmas do homem das cavernas. O homem das cavernas limitava-se a músculos e a um cérebro de mingau. Sem uma mulher para conduzi-lo e pensar por ele, seria um espetáculo mais que lamentável: um bebê de barbas, um coelho na forma de um mamute, uma frágil e absurda caricatura de deus.
Evidentemente, não quero dizer que a masculinidade não contribuiu para o complexo de reações químico-fisiológicas que produz o que chamamos de certas aptidões. O que quero dizer é que este complexo é impossível sem a contribuição feminina, ou seja, que ele é um produto da interação entre dois elementos. Nas mulheres de talento podemos ver o quadro oposto. Há alguma coisa de masculino nelas, que as faz tanto se barbear quanto brilhar. Nenhum dos dois sexos, sem alguma fertilização das características complementares do outro, é capaz de atingir os picos da criatividade humana. O homem, sem o toque salvador da mulher que existe nele, é parvo, ingênuo e romântico demais, fácil de enganar e anestesiado em sua imaginação, o que não lhe permite ser mais do que um oficial da cavalaria, um teólogo ou um gerente de banco. E a mulher, sem qualquer traço daquela divina inocência masculina, seria rígida demais para aqueles vastos jatos de fantasia que se projetam no coração do que chamamos de gênios. Ao homem exclusivamente masculino falta a graça necessária para dar forma objetiva aos seus sonhos mais sublimes e secretos; e a mulher exclusivamente feminina torna-se uma criatura cínica demais para ter o poder de sonhar."
Mas não. Não aconteceu essa discussão. Alguém entrou no mérito de que ninguém lê. E eu disse aquilo que sempre digo: a pessoa precisa tomar o gosto pela leitura cedo. Claro que, de preferência, isso tem que começar em casa. Mas se não começar em casa, tem que começar na escola. E que livros que os professores dão para os pobres adolescentes? A Moreninha. Não pode. Adolescente precisa de identificação. Principalmente hoje. Senão eles vão pro messenger, pro Orkut, pro Second Life, pro caralho a quatro. A tarefa de sentar a bunda de um adolescente e fazê-lo ler um livro nunca foi tão árdua. Porque há muita informação e muito mais o que fazer. Então eu digo que para um começo, eles deveriam ler os contemporâneos, com quem têm muito mais identificação. Ou talvez nem precise ser necessariamente os contemporâneos, mas OUTROS LIVROS, não esses que já não funcionam há tanto tempo e que já viraram instituição. Depois de tomado o gosto pela leitura, aí sim podem escolher o que quiserem. Eu só fui gostar de Machado de Assis depois de velha. Até então os olhos de ressaca de Capitu não me faziam nenhum sentido. Olhos de ressaca não fazem sentido para uma pessoa de quinze anos. Desculpe, mas não fazem. Só porque a história se passa com adolescentes não significa que SEJA para adolescentes. Alô! Mas não. Causei revolta entre a terceira idade. Uma professora veio dizer que fez os alunos se apaixonarem por Iracema (IRACEMA!) e que a passagem do defloramento para elas é uma coisa maravilhosa. Passagem do defloramento? Minha senhora, ninguém mais é deflorado. A não ser que você seja uma professora maravilhosa, eu duvido que as suas alunas tenham realmente gostado disso. Professores maravilhosos com o dom incrível de fazer os alunos se interessarem e cavocarem na literatura realmente têm o meu respeito. Mas eu duvido que seja o caso. Aí a outra veio: quer dizer que eu não posso dar Romeu e Julieta para uma pessoa de quinze anos ler? MAS É CLARO QUE NÃO PODE. Não para uma pessoa de quinze anos que ainda não tem o gosto pela leitura. Imagina se deparar com aquela linguagem arcaica quando você está APRENDENDO A GOSTAR DE LER. "Sois"? Não pode. Eu não sou professora, mas eu já fui aluna e lembro muito bem. O que eu já recebi de emails de adolescentes dizendo que descobriram que ler poderia ler legal através de mim, dos meus livros e das minhas indicações, minhas senhoras, vocês nem imaginam. Porque vocês ficam aí dando Iracema para os coitados dos adolescentes e eles acham que LER É CHATO. Eu mesma nunca li nenhum livro do qual eu tenha gostado na escola, mas tive a sorte de ter uma mãe traça provedora de livros bons. Se fosse depender da escola, talvez eu tivesse virado uma roqueira suja. Fiquei tão irritada que quase saí no meio do debate. Só não saí em consideração à Márcia, que eu admiro horrores e de quem eu gosto muito. Eu tenho horror de gente que não consegue enxergar o tempo em que vive. Existem pessoas de oitenta anos que conseguem enxergar perfeitamente o tempo em que vivem e vivê-lo, de fato. Não é uma questão de idade. Não é mesmo. É simplesmente uma cegueira retrógrada que acha que a juventude não sabe nada, que bom mesmo é ter cem anos e exaltar a idade como um troféu cheio de teias de aranha e pó. Pois fiquem vocês com os seus clássicos senis que eu vou fazer o meu trabalho. Porque isso eu não tenho dúvida de que eu sei fazer.
"Discurso Feminino na Literatura", da Márcia Denser:
"A escritora transgride a separação tácita existente entre esfera pública e privada, transformando-se ela própria, a mulher que publica, em “mulher pública”, quer dizer, a prostituta, que é a mulher pública por excelência; historicamente qualquer mulher que ousasse agir em público, arriscava-se a ser identificada como tal.
Criticamente, havia um acordo tácito de que certas palavras, certos temas estariam interditos às mulheres, devendo as questões do corpo e da sexualidade ser tratadas de uma forma elegante, esfriada ou cerebral, independente da qualidade do trabalho. Ou seja, está tudo bem, contanto que você escreva “de fora”, como homem. Ficcionistas e poetas que rompessem este acordo tácito, colocavam-se como transgressoras, apropriando-se de um discurso visto como prerrogativa masculina.
Quanto a mim, meu “fazer literário” é algo construído no cotidiano, constituindo-se o viver e o escrever uma só e a mesma coisa, não mais a vivência metafísica consumada apenas no plano subjetivo clariceano, e muito além duma subliteratura carraro/Cassandra.
Minha personagem toma a iniciativa no jogo de sedução e sexo, está interessada no seu próprio prazer, ela usa, não é usada pelo outro, desse modo opera a subversão do sistema de gêneros dominante e assim coloca a mulher como sujeito da ação, e não como objeto do outro, cancelando o papel de mulher–objeto. "
(Ela é foda, ela é incrível, eu sei.)
"A Mente Feminina" do H.L. Mencken, tirado do "Livro dos Insultos". Friso que foi escrito por um HOMEM em 1918. Li um breve trecho lá.
"(...) Esta cortante percepção da fanfarronice e do faz-de-conta masculino, esta aguda compreensão do homem como o eterno tragicômico, estão na base daquela piedosa ironia que responde pelo nome de instinto maternal. As mulheres adoram tratar um homem como um filho porque conseguem enxergar sua incapacidade de defesa, sua necessidade de um ambiente acolhedor e sua tocante tendência a se iludir. Este traço irônico não é apenas claro como água na vida real, diariamente; é também o que dá o tom da literatura feminina. Uma romancista, se for competente o bastante para ser levada a sério, nunca trata os homens como heróis. Ela sempre injeta em seu próprio personagem um toque de superioridade ou derrisão mal camufladas. Não consigo me lembrar de nenhum personagem masculino criado por uma mulher que não seja, no fundo, um palerma.
(...)
Os homens são fortes. São bravos em combate físico. Os homens são românticos e amam aquilo que concebem como sendo a beleza e a virtude. Os homens tendem à fé, à caridade e à esperança. Os homens sabem suar e carregar seus fardos. Os homens são ternos e cordiais. Mas, assim que demonstram possuir os verdadeiros fundamentos da inteligência - ou revelam capacidade para descobrir o cerne da verdade eterna no lusco-fusco da ilusão e da alucinação e tentam trazê-la à luz -, neste ponto estarão sendo femininos, e ainda nutridos pelo leite de suas mães. Os traços e qualidades essenciais do homem, suas características ainda não poluídas, são as mesmas do homem das cavernas. O homem das cavernas limitava-se a músculos e a um cérebro de mingau. Sem uma mulher para conduzi-lo e pensar por ele, seria um espetáculo mais que lamentável: um bebê de barbas, um coelho na forma de um mamute, uma frágil e absurda caricatura de deus.
Evidentemente, não quero dizer que a masculinidade não contribuiu para o complexo de reações químico-fisiológicas que produz o que chamamos de certas aptidões. O que quero dizer é que este complexo é impossível sem a contribuição feminina, ou seja, que ele é um produto da interação entre dois elementos. Nas mulheres de talento podemos ver o quadro oposto. Há alguma coisa de masculino nelas, que as faz tanto se barbear quanto brilhar. Nenhum dos dois sexos, sem alguma fertilização das características complementares do outro, é capaz de atingir os picos da criatividade humana. O homem, sem o toque salvador da mulher que existe nele, é parvo, ingênuo e romântico demais, fácil de enganar e anestesiado em sua imaginação, o que não lhe permite ser mais do que um oficial da cavalaria, um teólogo ou um gerente de banco. E a mulher, sem qualquer traço daquela divina inocência masculina, seria rígida demais para aqueles vastos jatos de fantasia que se projetam no coração do que chamamos de gênios. Ao homem exclusivamente masculino falta a graça necessária para dar forma objetiva aos seus sonhos mais sublimes e secretos; e a mulher exclusivamente feminina torna-se uma criatura cínica demais para ter o poder de sonhar."
Mas não. Não aconteceu essa discussão. Alguém entrou no mérito de que ninguém lê. E eu disse aquilo que sempre digo: a pessoa precisa tomar o gosto pela leitura cedo. Claro que, de preferência, isso tem que começar em casa. Mas se não começar em casa, tem que começar na escola. E que livros que os professores dão para os pobres adolescentes? A Moreninha. Não pode. Adolescente precisa de identificação. Principalmente hoje. Senão eles vão pro messenger, pro Orkut, pro Second Life, pro caralho a quatro. A tarefa de sentar a bunda de um adolescente e fazê-lo ler um livro nunca foi tão árdua. Porque há muita informação e muito mais o que fazer. Então eu digo que para um começo, eles deveriam ler os contemporâneos, com quem têm muito mais identificação. Ou talvez nem precise ser necessariamente os contemporâneos, mas OUTROS LIVROS, não esses que já não funcionam há tanto tempo e que já viraram instituição. Depois de tomado o gosto pela leitura, aí sim podem escolher o que quiserem. Eu só fui gostar de Machado de Assis depois de velha. Até então os olhos de ressaca de Capitu não me faziam nenhum sentido. Olhos de ressaca não fazem sentido para uma pessoa de quinze anos. Desculpe, mas não fazem. Só porque a história se passa com adolescentes não significa que SEJA para adolescentes. Alô! Mas não. Causei revolta entre a terceira idade. Uma professora veio dizer que fez os alunos se apaixonarem por Iracema (IRACEMA!) e que a passagem do defloramento para elas é uma coisa maravilhosa. Passagem do defloramento? Minha senhora, ninguém mais é deflorado. A não ser que você seja uma professora maravilhosa, eu duvido que as suas alunas tenham realmente gostado disso. Professores maravilhosos com o dom incrível de fazer os alunos se interessarem e cavocarem na literatura realmente têm o meu respeito. Mas eu duvido que seja o caso. Aí a outra veio: quer dizer que eu não posso dar Romeu e Julieta para uma pessoa de quinze anos ler? MAS É CLARO QUE NÃO PODE. Não para uma pessoa de quinze anos que ainda não tem o gosto pela leitura. Imagina se deparar com aquela linguagem arcaica quando você está APRENDENDO A GOSTAR DE LER. "Sois"? Não pode. Eu não sou professora, mas eu já fui aluna e lembro muito bem. O que eu já recebi de emails de adolescentes dizendo que descobriram que ler poderia ler legal através de mim, dos meus livros e das minhas indicações, minhas senhoras, vocês nem imaginam. Porque vocês ficam aí dando Iracema para os coitados dos adolescentes e eles acham que LER É CHATO. Eu mesma nunca li nenhum livro do qual eu tenha gostado na escola, mas tive a sorte de ter uma mãe traça provedora de livros bons. Se fosse depender da escola, talvez eu tivesse virado uma roqueira suja. Fiquei tão irritada que quase saí no meio do debate. Só não saí em consideração à Márcia, que eu admiro horrores e de quem eu gosto muito. Eu tenho horror de gente que não consegue enxergar o tempo em que vive. Existem pessoas de oitenta anos que conseguem enxergar perfeitamente o tempo em que vivem e vivê-lo, de fato. Não é uma questão de idade. Não é mesmo. É simplesmente uma cegueira retrógrada que acha que a juventude não sabe nada, que bom mesmo é ter cem anos e exaltar a idade como um troféu cheio de teias de aranha e pó. Pois fiquem vocês com os seus clássicos senis que eu vou fazer o meu trabalho. Porque isso eu não tenho dúvida de que eu sei fazer.